À flor da pele

À flor da pele

Texto e foto de Valéria del Cueto

O rendilhado dos raios de sol atravessando as folhagens se projeta nas cortinas cor de mostarda do quarto. Ditam a hora do primeiro movimento do dia.

Ainda é um esforço pequeno, apenas o suficiente para jogar o edredon de lado, chegar ao pé da cama e abrir as janelas deixando a luz solar que ultrapassa a borda da montanha entrar e aquecer a parede da estante e da escrivaninha, passeando ao lado do notebook detentor de escritos, imagens e segredos.

O murmúrio rouco e contínuo do riozinho predomina até os passarinhos começarem a algazarra intermitente entre as espécies que visitam a mangueira, a goiabeira as bananeiras e o bambuzal, do outro lado do fluxo da água, pirulitando entre as folhas e sacudindo os galhos, única forma de pressentir a dança das espécies que circulam na floresta.

É melhor nem respirar e evitar movimentos bruscos. Eles podem atravessar a cantoria e alertar a passarada da presença do ser estranho que espreita o espetáculo. Humanos assumidos não são bem-vindos na colorida e inquieta festa matinal, só os que aceitam a imposição da exigência da imobilidade e conseguem adequar o ritmo da respiração à sintonia da mãe natureza.

Até o acionamento da máquina fotográfica tem que ser delicado, nada brusco. Lento e seguro como o dedo no gatilho de uma arma. Que comparação terrível. Mas é verdadeira. O “tiro” da imagem não pode ser brusco. Tem que ser leve e constante. Quando se alcança essa afinidade os passarinhos quase fazem poses dançando, nesse caso, nos galhos e folhas largas do mamoeiro.

Depois é tempo de seguir o fluxo do riacho indo pela estradinha de terra que ladeia a água, cruzar a ponte de madeira, atravessar o gramado e, fazendo um esforço imenso para não se perder do objeto de desejo, evitar – não sem marcar a luz especial, a tentação de parar para “desenhar” com a máquina fotográfica as muitas flores e a vegetação. Elas tremulam com a brisa acenando suas cores em busca de atenção, o que desviaria o foco ainda não alcançado do projeto da manhã ensolarada de inverno.

As pedras do riozinho por onde a água cristalina brinca de deslizar é o destino quase inalcançável. São muitas as tentações. O guia sonoro fica mais definido a medida em que a aproximação da margem vai sendo feita. É o som da água que muda sua linguagem acrescentando tonalidades e notas, agora distinguíveis e estimulantes, diferentes do murmúrio rouco do despertar.

Tentar entender o diálogo das nuances do encontro das pedras com o serpentear aquático que forma cachoeirinhas, redemoinhos, ou se espreguiça nos remansos arenosos, é tão impossível quanto assistir um filme turco sem legenda. Mal dá para distinguir o início, o meio e o fim das frases dos diálogos, o que dirá compreender as palavras. Traduzi-las então…

O fluir deslizante no leito pedregulhento é assim. A gente, no máximo, capta o sentimento, a energia despendida no movimento capturada pelos reflexos espelhados que mudam de cores e alteram suas múltiplas tonalidades dependendo do ângulo, da intensidade e dos caprichos dos raios de sol.

Pensa no que acontece, por exemplo, com o passar festivo das nuvens ligeiras que sassaricam ao sabor das brisas e correm quando fustigadas pelos ventos. Lembre-se que falamos de um dia ensolarado.

Tudo é leve. Profunda, só a percepção para acionar a camada da sensibilidade (capaz de detectar a sutileza dessas nuances) e a memória. Ela, que permite esse registro. Feito no inseparável caderninho que vai sendo escrevinhado sobre a canga que protege a pele do cimento da piscina de água natural, abastecida pela bica que vem da mina, exigindo atenção com seu som forte e constante.

Assim vai se derramando e ritmando as palavras dessa que é mais uma crônica @no_rumo do Sem Fim…  

*Valéria del Cueto é jornalista, fotógrafa e gestora de carnaval. Da série “Não sei onde enquadrar” do SEM FIM… delcueto.wordpress.com

Uma resposta para “À flor da pele”.

  1. Avatar de Vânia Cordeiro de Miranda
    Vânia Cordeiro de Miranda

    Juro lindo, sensível
    Adorei

    Curtido por 1 pessoa

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